quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Expresso: "As Livraria estão cheias de lixo sobre Salazar"

Vale a pena ler esta entrevista a António Araújo feita pelo Expresso. Toca na ferida ao desmascarar este epifenómeno que é a fusão entre a escrita romanceada e a escrita historiográfica, disfarçada de jornalismo de investigação. Estamos a assistir a jornalistas a tentar fazer trabalhos científicos de história, mas acrescentando-lhe algum salero, dramatismo, pois convém vender alguma coisita. Não falo de jornalistas que escrevem, assumidamente romances históricos, como é evidente...
A entrevista é também importante ao reafirmar a importância dos Arquivos e dos seus documentos, não só pelo seu valor informativo, mas também pelo seu valor evidencial! Mencionando algumas instituições importantes que merecem um reparo nosso, como cidadãos.

http://expresso.sapo.pt/as-livrarias-estao-cheias-de-lixo-sobre-salazar=f745113#ixzz27aPa3QaW

Jurista, historiador e consultor do Presidente da República, António Araújo edita um blogue com crítica impiedosa a alguns livros inspirados em Salazar e no Estado Novo.

Oitenta anos depois da ascensão de Salazar ao poder, o salazarismo continua a ser estudado e a suscitar o interesse da opinião pública. Ao contrário do que muitos continuam a pensar, a subida ao poder de Salazar não foi uma marcha triunfal. Pelo contrário, foi muito complexa e atribulada. Foram anos de permanente sobressalto. Ainda como ministro das Finanças, viveu várias crises, como a "crise dos sinos".

Que é, aliás, o tema do seu último livro, "Sons de Sinos. Estado e Igreja no advento do salazarismo". Exato. Ele era o ministro das Finanças do Governo de Vicente de Freitas quando se deu a "crise dos sinos". O ministro da Justiça era Mário de Figueiredo, que se demitiu. Depois, o governo caiu, Vicente de Freitas foi substituído pelo general Ivens Ferraz e de todos os ministros só Salazar transitou para o novo gabinete, mantendo a pasta das Finanças.

Pouco depois ascendeu a presidente do Conselho de Ministros. Onde também não teve vida fácil. Logo em 1936 teve a Revolta dos Marinheiros. No mesmo ano começou a Guerra Civil de Espanha e a seguir começou a Segunda Guerra Mundial. Talvez só tenha tido tranquilidade na década de 50, que praticamente nunca foi estudada pelos nossos historiadores. E, em 1961, foi o seu annus horribilis. Como se vê, Salazar andou sempre a ter que gerir uma série de conflitos e sensibilidades antagónicas. Com isto não estou a louvar Salazar - nada disso. Mas penso que muitos dos nossos historiadores ainda estão excessivamente centrados na lógica repressiva do salazarismo.

A longevidade de Salazar deve-se à "administração da cunha"

Mas a repressão é uma das características do Estado Novo. O estudo da repressão ajuda a compreender a natureza ditatorial do regime. Mas o salazarismo, na sua essência, foi muito mais do que isso. Vários historiadores têm valorizado demasiado a lógica da repressão, da repressão preventiva. Mas a grande lógica de Salazar, a razão da sua longevidade e do apoio das elites, era aquilo a que eu chamaria a "administração da cunha". Não há praticamente nenhum general que, depois de exercer funções políticas, não acabe num conselho de administração de uma empresa... Nisso, Salazar era habilíssimo. Fiz um levantamento da correspondência de todos os professores de Direito, de Lisboa e Coimbra, com Salazar, a partir da documentação existente no Arquivo Oliveira Salazar. Como sabe, Salazar guardava tudo.

Basta ir à Torre do Tombo e consultar o Arquivo Salazar para o perceber... Sim, mas há muita gente que não trabalha os arquivos. O levantamento que fiz sobre os professores de Direito mostra a forma como ele administrava os pedidos. O Cabral Moncada, por exemplo, não há carta que escreva a Salazar que não inclua um pedido. Há também inúmeros pedidos aos presidentes da República e às respetivas mulheres. Vê-se isso muito bem no Arquivo de Américo Tomás, que consultei quando estive a fazer a investigação sobre a Capela do Rato.

O regime era pequenino e seletivo - até na violência

Encontrou alguma coisa nesse arquivo sobre a Capela do Rato? Nesse, não muito. Mas noutros arquivos há muita documentação. Por isso é que a tese chegou às quatro mil páginas... Tomás recebia muitos pedidos e algumas das cartas constituem um feedback desses pedidos, na medida em que vêm agradecer qualquer coisa, um favor concedido. O regime assentou muitíssimo na administração de favores, que é uma componente que está completamente por estudar. A família do general Domingos Oliveira, que foi substituído por Salazar na chefia do Governo, não deixou de lhe fazer vários pedidos, até para questões menoríssimas, como continuar a ter acesso a praias de acesso reservado... Salazar era um gestor muito habilidoso de favores. Com isto não estou a dar uma visão positiva ou rósea do Estado Novo. Só estou a dizer que a realidade é muito mais complexa do que habitualmente se apresenta. A gestão da cunha e dos interesses é extremamente importante para a consolidação de Salazar no poder e para sua longevidade política. Provavelmente, mais importante do que a violência. Sempre houve contenção no uso sistemático da violência pura e dura.

Mas havia prisões políticas, violência, tortura. Claro que havia. Os comunistas e, até uma dada fase, os anarco-sindicalistas eram os principais alvos. Os socialistas e os republicanos dos cafés da Baixa eram mais ou menos tolerados, ou pelo menos controlados. O que eu quero dizer é que até no uso da violência o regime era pequenino e seletivo, paroquial. E o regime nem sempre foi linear durante os seus 48 anos. Basta ver, por exemplo, que na última fase do marcelismo, desfeita a esperança de abertura, houve um claro endurecimento, até por reação à luta armada e ao movimento estudantil. A censura foi uma constante. Neste momento estou a preparar uma investigação sobre as cheias de 1967, que foram a maior tragédia natural que se abateu sobre Lisboa depois do terramoto de 1755. Na altura, nada se pôde escrever. Morreu mais de meio milhar de pessoas em pouco mais de uma noite - e quase meio século depois não há um único livro, não há sequer um artigo científico sobre isso.

As editoras só querem o lado frívolo de Salazar

É razão para lhe perguntar: o que estão às vezes a fazer os historiadores portugueses? Há atualmente um problema gravíssimo. Os historiadores que estão na academia já estão empregados. E os da minha geração, ou abaixo dela, estão à mercê dos programas de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Nunca tive nem pedi bolsas da FCT, mas amigos e colegas meus, que querem fazer trabalho sério, estão a ficar numa situação muito difícil. Isto devido a uma tentativa de transposição acrítica para as ciências humanas dos critérios das ciências exatas, bem como de uma ideia provinciana do que é a "internacionalização". Repare que quase todos os grandes intelectuais portugueses do séc. XX passaram pelo estrangeiro, internacionalização sempre existiu. Agora há é uma grande pressão para que só se escrevam artigos para as revistas internacionais ditas de classe A. As revistas portuguesas de História desapareceram todas. Não defendo o nacionalismo da investigação, mas, a prazo, a historiografia em Portugal pode vir a ser sufocada se estes critérios forem aplicados cegamente. Quem quiser escrever, por exemplo, um artigo de 10 ou 12 páginas sobre o Duarte Pacheco, em revistas estrangeiras, primeiro terá que explicar o que foi o Estado Novo, depois terá que fazer comparações com outros regimes e só nas 4 ou 5 últimas páginas poderá escrever qualquer coisa sobre o próprio Duarte Pacheco. Há ainda outro problema grave, que é o da cartelização das editoras, que dificulta a publicação de trabalhos sérios.

E o concomitante desaparecimento das pequenas editoras. Existem praticamente dois grandes grupos em Portugal, a Leya e a Porto Editora. As pequenas editoras publicam quase só por carolice e por isso devem ser saudadas e procuradas. Nunca bati à porta das grandes editoras. O livro dos Sinos e o livro sobre a Constituição de 33 foram editados pela Tenacitas e um anterior, sobre os jesuítas, pela Roma Editora. Nunca lhes pedi direitos de autor. A edição em Portugal está a ir por um mau caminho, com consequências gravíssimas para os que querem publicar. Descobriram o filão do Salazar, mas só querem o seu lado frívolo. Vão matar a galinha dos ovos de ouro. Qualquer dia, ninguém vai conseguir publicar nada de jeito sobre o Estado Novo!

O caso de Fernando Dacosta é muito singular

Muito se tem escrito, na comunicação social e nas editoras, sobre e em torno de Salazar. É verdade: Salazar rende e vende. E há uma grande tendência da academia de se fechar numa torre de marfim e desconhecer este novo tipo de livros, sobre os quais os académicos simplesmente não escrevem.

Não é exatamente o seu caso, que está farto de escrever no blogue Malomil . E repare que eu próprio já fui acusado de estar a "bater em mortos", em gente que não merece atenção... A verdade é que estamos a falar de livros que vendem muitos milhares de exemplares. Veja por exemplo o caso do Fernando Dacosta. É um caso muito singular.

Singular porquê? Porque há três realidades em Portugal. Há História, há ficção, e depois há Fernando Dacosta. Ao "Máscaras de Salazar" o Dacosta chama-lhe "narrativa". E, a pretexto de ser "narrativa", aparece um produto em que quase nunca se percebe onde termina a história e começa a ficção. É o hibridismo completo. No "Enquanto Salazar Dormia..." e noutros livros do Domingos Amaral, assumidamente ficcionais, acho que não se devem exigir notas de pé de página, como é óbvio. Mas ao Dacosta? A "narrativa" já vendeu mais de 30 ou 40 mil exemplares. Veja, por exemplo, o que ele escreve sobre o turismo sexual em Portugal nas Cruzadas e nos Descobrimentos... Nunca diz onde foi buscar aqueles e outros dados, estamos num campo completamente indefinido. O que acontece, depois, é que até o Joaquim Vieira, que é um autor sério, acaba por citar o Fernando Dacosta, no livro "A Governanta", bem como a Felícia Cabrita. Esta escrita "narrativa" é um estilo "porreiro". É fácil e vende uma loucura.

O livro de São José Almeida é homofóbico e fascista

Fernando Dacosta fez escola? Acho que sim. Até certo ponto, a Felícia Cabrita, por exemplo, acabou por ir na onda, sobretudo no estilo da escrita. E veja o livro da São José Almeida, "Homossexuais no Estado Novo", em que uma das principais fontes é, justamente, o Dacosta.

Você dedica a esse livro uma crítica violentíssima... Porque o livro de São José Almeida é um caso particularmente grave. Apoia-se em fontes orais que se resguardam no mais absoluto anonimato e que mencionam outras pessoas, apontando-as a dedo. É um livro homofóbico, que se baseia na quadrilhice. Ainda por cima premiado pela Comissão Europeia. Acho mesmo o que escrevi: é um livro fascista.

Fascista? Tem todos os dispositivos que integram o fascismo mental, da denúncia e da calúnia anónima. Neste sentido, não é diferente do que faziam os bufos da Legião. Veja a "acusação" que ela faz à filha do então Presidente da República, Óscar Carmona. Só que se esquece, ou ignora, que Carmona não teve uma, mas duas filhas, cujas famílias estão aí, bem vivas. Porque não foi falar com elas? Escreve também sobre a misteriosa morte de Carlos Burnay, mas não foi consultar o respetivo processo à Polícia Judiciária. Seria fácil: o processo está lá no arquivo. Para escrever um livro sobre a homossexualidade no Estado Novo tinha obrigação de ir aos arquivos da PIDE, da Judiciária e dos tribunais, procurar as condenações por "vícios contra a natureza", como eram chamados. Só assim poderia ter reconstituído como é que os cidadãos comuns sofriam na pele a perseguição aos homossexuais, que existia em Portugal como nos outros países, nas democracias da altura. Mas não: o livro é feito com base em fontes anónimas e em meia dúzia de telefonadelas. Noutros livros, que andam por aí, impera a lógica dos "Morangos com Açúcar" aplicada a livros de caráter histórico. É o que o povo consome porque é o que lhe dão.

O snobismo das elites intelectuais

A imagem do Estado Novo acaba por ser fortemente distorcida... ...e apresentada, em certo sentido, de forma rósea. Estamos a entrar na comercialização completa. Não posso conceber que uma editora com 200 anos de história publique, por exemplo, "Salazar, o Maçon".

Está a falar da Bertrand. Foi a mesma editora que publicou - e que se orgulha de o ter feito - as obras de Aquilino Ribeiro. Uma editora que se orgulha - e bem - dos seus pergaminhos tem de ser muito mais criteriosa na escolha dos seus autores. Não pode publicar um livro de José da Costa Pimenta, que foi aposentado compulsivamente da magistratura. Claro que isso não vem no currículo publicado na badana do livro, que já vai na segunda edição. Às tantas, Costa Pimenta começou a ver maçons em todo o lado - incluindo Salazar. Diz no livro que até Cristo usava avental... Admito que é difícil escrever sobre um livro destes, que é uma insanidade do princípio ao fim. Mas os críticos e historiadores não escrevem sobre este livro e outros do género porque acham que não têm dignidade suficiente para que se escreva sobre eles. É o snobismo das elites intelectuais, que desprezam estas coisas. Da mesma maneira que não veem os "Morangos com Açúcar". Ora isto é a versão em livro dos "Morangos com Açúcar". Vamos continuar a ignorar este fenómeno?

No entanto, alguns desses livros levam a chancela, como prefácio ou introdução, de gente prestigiada da academia. A Teresa Beleza prefacia o livro da São José Almeida. Jurista prestigiada como é, não deveria ignorar o recurso ao absoluto anonimato das fontes. O livro não é uma investigação, é uma delação. É uma espécie de revista "Caras" da homossexualidade estadonovista, pois só trata dos famosos. E Freitas do Amaral também prefacia o livro de Felícia Cabrita, "Os Amores de Salazar".

Felícia Cabrita plagiada por autora francesa

Que, por sua vez, foi alvo de plágio por parte de uma autora francesa: Diane Ducret, em "Mulheres de Ditadores". Foi você que o descobriu - e escreveu no blogue... Ela faz um completo e extenso plágio da Felícia Cabrita. A versão portuguesa da Ducret foi retirada das livrarias pelos próprios editores (Casa das Letras), mas julgo que continua à venda online. Foi retirado depois de eu ter escrito no blogue e das reações que provocou por parte da Felícia Cabrita. Mas em França a autora já lançou um segundo volume, com grandes programas na televisão. Nem a própria Felícia Cabrita tinha notado que havia sido plagiada. Não sei se processou a autora francesa - sei apenas que se queixou à editora portuguesa. Isso veio nos jornais, nunca falei com a Felícia Cabrita.

Uma das suas mais recentes críticas é sobre o último livro de Domingos Amaral, "Verão Quente". Note que um livro dele, segundo a editora, já vendeu 200 mil exemplares, e tem edições no Brasil e na Polónia. Não subestimemos isto. Este agora é um livro que transforma o "Verão quente" de 74/75 em "Verão tórrido". Não é difícil criticar aquilo. Já o de Costa Pimenta é mais difícil, pois não tem ponta por onde se pegue. No vazio, é difícil trabalhar. Onde não há nada, nada se pode criticar. A única fonte primária que Costa Pimenta cita é uma alegada carta dirigida a Salazar e posta à venda na Internet... Isto, repare, é escrito num livro publicado pela Bertrand, a bicentenária Bertrand!

O mercado está a ser invadido por este lixo

A figura de Salazar, mais que a sua obra, parece uma fonte inesgotável... Estamos a descobrir um Salazar completamente novo. Ninguém o conhecia. Um Salazar que era maçon (garante Costa Pimenta), que vivia rodeado de gays (na versão Dacosta, em "As Máscaras de Salazar"), ou um Salazar que era uma espécie de D. Juan (na versão Felícia Cabrita, em "As Mulheres de Salazar"), mas com um longo período de abstinência durante a Segunda Guerra Mundial (diz Freitas do Amaral, no prefácio ao livro da Felícia). Não estou a defender Salazar. Mas está-se a esquecer o que ele foi historicamente. Já entrou no domínio do romance histórico disfarçado de obra científica. O mercado está a ser invadido por este lixo e por uma outra corrente muito típica, que é o memorialismo africano.

As livrarias estão cheias disso! Alguns com laivos nostálgicos e saudosistas. Que eu não critico, compreendo. Começou pela publicação de álbuns de postais ilustrados, até com qualidade. Vieram depois as memórias, relatos e romances de alguns militares que estiveram na guerra, e agora já se alargou aos civis. Ultimamente há uma onda de trabalhos sobre os retornados. Num outro país, a vinda das ex-colónias de um milhão de pessoas já teria dado origem a estudos e mais estudos académicos. Por isso é que não crítico o memorialismo colonial, mas o memorialismo tem sempre limites do ponto de vista historiográfico. Mas insisto: as pessoas não vão aos arquivos. Claro que isso dá trabalho, mas muitos autores não vão lá. E há muita coisa por descobrir nos arquivos. Já se sabia, até certo ponto, mas confirmei, sem margem para dúvida, a utilização de napalm durante a guerra colonial. O uso do napalm, note-se, não era proibido, mas era um tabu. Ora, os documentos sobre o napalm estão no Arquivo da Defesa Nacional. Tenho tido muito mais facilidade em lá ir, a Paço de Arcos (que está sempre vazio...), do que a muitos arquivos civis.

Arquivo do MNE está num estado lamentável

Tem tido dificuldades na Torre do Tombo? Não me referia à Torre do Tombo, onde o diretor, Silvestre Lacerda, tem feito um trabalho notável. Por exemplo, na digitalização de documentos. É uma atitude de cidadania muito importante, contribuindo para democratizar o acesso ao conhecimento a todos os investigadores, estejam em Lisboa ou em Trás-os-Montes. Não poupo elogios ao seu trabalho. Já o estado do arquivo do MNE é lamentável. Até o acesso à informação é extremamente difícil. Não deixa de ser curioso que, sendo a parte militar o 'hardcore' da história do napalm, toda a informação existente no Arquivo da Defesa foi disponibilizada sem problemas, enquanto no MNE tive resistências.

O seu blogue está repleto de observações mordazes aos livros que vão sendo lançados. O blogue começou em dezembro de 2011, mas não é "meu", sou apenas o editor. Quem quiser pode lá escrever - como já aconteceu com o João Medina, o Francisco Teixeira da Mota, o José Luís Jacinto ou o José Barreto, que ali deixou recentemente um notável texto sobre o Fernando Pessoa. O blogue não tem um propósito militante. A blogosfera é muito maniqueísta, é tudo pró ou contra, tudo inflamado, caceteiro, e está dominada pela política do dia-a-dia. Essa política não me interessa nada, é espuma, e o blogue foge dela a sete pés. A blogosfera distribui pancadaria gratuita: antes, era sobre Sócrates, agora é sobre Relvas. Veja por exemplo a informação que foi posta a circular na Net, garantindo que Cavaco Silva era da PIDE. Agente da PIDE?! É inacreditável! Mas há pessoas que caem e acreditam.

Centro de Documentação 25 de Abril no quartel do Carmo

Os seus textos também não são nada meigos. Há um ou outro texto mais contundente, como aquele sobre o livro da São José Almeida - mas faço uma crítica que creio ser justa e fundamentada. Mas encontra lá muita coisa sobre arte, por exemplo. Publiquei lá toda a investigação sobre o uso do napalm, bem como algumas decisões judiciais do Estado Novo, como, por exemplo, a do chamado 'crime da Balada da Praia dos Cães'. Tenho vindo a colecionar desde há muitos anos decisões dos tribunais do Estado Novo. Uma delas foi o processo da Capela do Rato, arquivado no Supremo Tribunal Administrativo, a base do meu doutoramento. Esse tipo de decisões é uma fonte histórica muito importante. Talvez o meu cruzamento entre o Direito e a História me dê alguma sensibilidade para perceber a importância das fontes judiciais. Os arquivos policiais e judiciais portugueses estão num estado terrífico. Alguns deles nem se sabe onde estão - caso dos arquivos da PSP, uma vez que os da Judiciária estão melhor conservados. Os governantes nunca tiveram uma política sistemática de arquivos, que não têm sido nada bem tratados. A memória da democracia está a ser um bocadinho mal tratada. Tenho medo que se percam até documentos mais recentes do que outros, mais antigos. O Centro de Documentação 25 de Abril deveria estar em Lisboa.

No entanto, foi uma excelente iniciativa e apesar de estar na Universidade de Coimbra é de rápido acesso. Sem dúvida. Aí, o Boaventura Sousa Santos (creio que foi ele) teve uma grande visão. A criação do Centro de Documentação 25 de Abril foi um golpe de asa e diz muito da passividade da Universidade de Lisboa. Estão sempre investigadores estrangeiros em Coimbra e o Centro é de um grande profissionalismo. Mas um centro de documentação sobre o 25 de Abril devia estar em Lisboa, até simbolicamente no Quartel do Carmo. Além disso, devia haver um levantamento sistemático dos espólios privados. O Fernando Rosas e a sua equipa têm publicado alguma coisa, como os trabalhos sobre a correspondência do Pedro Teotónio Pereira e do cardeal Cerejeira. E a Fundação Mário Soares também tem recolhido muitos espólios. Mas devia existir um roteiro sistemático dos espólios privados.

Os jornalistas não estão isentos da verdade e do rigor

As críticas que tem publicado incidem sobretudo sobre o trabalho de jornalistas. Mas não é nenhuma crítica aos jornalistas enquanto tal. O único grande trabalho sobre as cheias de Lisboa, por exemplo, é uma reportagem de jornalistas, neste caso do jornal "Público". Mas os jornalistas também não estão isentos dos critérios de apuramento da verdade e do rigor. E repare que estou a trabalhar, digamos, a parte mais baixa do segmento. Como bem sabe, não tenho nada contra a profissão. E também não veja nisto uma defesa da academia.

As suas críticas começaram por incidir sobre trabalhos de jornalistas, mas agora envolveu-se na polémica entre os historiadores Manuel Loff e Rui Ramos, a propósito da "História de Portugal", de que este último é um dos co-autores. Quando me propôs esta entrevista, como sabe, essa questão nem sequer tinha surgido ainda. E aquilo a que chama "polémica" não foi polémica nenhuma. É evidente que o livro coordenado por Rui Ramos pode e merece ser discutido. Mas qualquer crítica a um trabalho intelectual tem um pressuposto moral: o compromisso com a verdade. Não se inicia honestamente uma discussão sobre um livro com base em falsidades e citações truncadas, como Manuel Loff fez no caso da História de Portugal coordenada por Rui Ramos. Comigo, passou-se o mesmo. Por isso, em nome do direito à memória, vim dar  testemunho: recordei apenas que Manuel Loff me atribuíra opiniões que nunca manifestei e até, imagine, a autoria de textos que eu nunca escrevi. Foi ao ponto de fazer citações de textos meus no Diário de Notícias quando nunca publiquei na vida um único artigo de opinião no Diário de Notícias! Aliás, tem feito o mesmo a outras pessoas, como Victor Pereira, um grande historiador que vive em França. Atribuiu-lhe também opiniões e fez citações de frases que ele nunca escreveu. Quer no meu caso, quer no de Victor Pereira, recusou-se sempre a admitir que se tinha enganado. Nunca rectificou, nunca repôs a verdade. Quando intervim, apenas pretendi, e acho que tenho esse direito, que ele reconhecesse um lapso factual sobre o qual não podem existir duas opiniões divergentes: é "sim" ou "não", ou escrevi ou não escrevi os textos cuja autoria me atribuiu. Negou, negou até ao fim, nunca esclareceu a verdade. Afinal, quem é, então, o branqueador do passado, o negacionista compulsivo? Manuel Loff mostrou ser um grande "revisionista" de... Manuel Loff. Repare, o caso é grave: fugir à reposição da verdade revela, acima de tudo, um desprezo profundo pelo bom nome das outras pessoas. Isto, desculpem-me, não tem nada a ver com historiografia ou com ideologia. Isto tem a ver com ética. A ética da verdade e do respeito pela dignidade dos outros. Ainda bem que aqueles métodos foram completamente desmascarados.

Capa de livro sobre o 25 de Abril com foto do Maio de 68

As suas críticas não poupam algumas capas de livros. O recurso aos bancos de imagens também faz parte desta lógica facilitista. Um ateliê com a responsabilidade do Henrique Cayate não pode utilizar na capa de um livro sobre o 25 de Abril uma fotografia do Maio de 68 em Paris - como acontece com o recente romance de Manuel Moya, "Cinzas de Abril". Não pode! Não quero acreditar que tenha sido o próprio Cayate, como é evidente, que concebeu a capa. Foi alguém do seu ateliê que recorreu a um banco de imagens. No passado, tivemos uma tradição de grandes ilustradores e fotógrafos que se está a perder. É a má moeda que expulsa a boa moeda... A boa moeda é expulsa nos conteúdos e agora até nas próprias capas, todas sarapintadas, kitsch. Daqui a uns anos, não haverá trabalho para os nossos ilustradores ou fotógrafos, será tudo comprado em bancos de imagens e depois trabalhado no Photoshop.

A sua tese de doutoramento, de quatro mil páginas, é sobre o caso da capela do Rato. Quando é que o leitor comum a vai poder ler? Estou a pensar em colocar online o essencial, incluindo os anexos. Depois, conto fazer uma edição muito mais concisa, de cerca de 300 páginas.

Conhece alguma tese em Portugal com dimensão semelhante? Não, mas isso não é qualidade, é defeito meu. Antes de Bolonha não havia propriamente limites para as teses em número de páginas. Agora sim. E, a meu ver, esses limites são demasiado restritivos. É outra ameaça à investigação séria. Onde é que vamos parar com tantas ameaças, vindas de tantos lados?

1 comentário:

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