Deixo aqui uma crónica bastante interessante do economista J. Albano Santos...
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Por razões bem conhecidas, os portugueses estão a ser convocados para um período de sacrifícios acrescidos, com especial incidência no plano fiscal. É de acreditar que, por maior que seja o esforço exigido pelo ajustamento macroeconómico em curso, as pessoas tenderão a enfrentá-lo com decisão se virem que ele é equitativamente repartido por todos. A reacção será, porém, muito diferente se alastrar o sentimento de que há grupos que conseguem escapar à sua parte nos sacrifícios.
Ora, esse perigo existe e é tão antigo como o próprio imposto. Aliás, a História ensina que o privilégio de grupos sociais isentos de tributação chegou a ser um facto aceite, quantas vezes com argumentos fantásticos: basta lembrar o caso do Arcebispo de Sens que, quando instado por Richelieu para passar a pagar impostos, retorquiu, indignado, que "o uso antigo era que o povo contribuísse com os seus bens, a nobreza com o seu sangue e o clero com as suas orações".
Embora o Mundo tenha mudado muito desde então, o eminente arcebispo continua a ter fiéis seguidores. É certo que, hoje em dia, o clero e a nobreza são tributados como toda a gente. Ainda assim, floresce entre nós uma nova espécie de "aristocracia fiscal" composta por pessoas que parecem estar isentas de impostos sobre o rendimento. Contribuem para o bem comum, claro está – mas com as suas valiosas opiniões sobre o Estado e a sua impagável censura às deficiências dos serviços públicos.
Esta moderna "aristocracia fiscal" é um grupo vasto e heterogéneo: pode envolver gente tão diversa como o biscateiro ou o empresário, o merceeiro ou o profissional liberal, o feirante ou o senhorio. Pessoas estimáveis, unidas por um traço comum – o de poderem subtrair o seu rendimento (ou boa parte dele) ao imposto devido. Não o fazem, aliás, por sofrerem de qualquer perversidade pessoal mas, simplesmente, porque os proventos que recebem têm características especiais do ponto de vista fiscal.
De facto, as matérias tributáveis não são todas iguais quanto à possibilidade de controlo pelo Fisco: umas são de difícil ocultação (v.g., rendimentos do trabalho por conta de outrem, património imobiliário); outras são mais fáceis de dissimular (v.g., rendimentos do trabalho por conta própria, património mobiliário). É nesta diferença que assenta a discriminação dos cidadãos em dois grupos: os que são forçados a contribuir para os cofres públicos e a dita "aristocracia fiscal" a quem é dado escapar alegremente.
Em condições normais, esta discriminação já é grave, dados os efeitos perniciosos que tem a vários níveis: no plano político, corrompe a cidadania e a coesão social; no plano económico, subverte a concorrência; no plano financeiro, lesa o erário público em somas avultadas (admitindo uma economia subterrânea na casa dos 20% do PIB e a sua tributação em termos médios, pode estimar-se que deixa de ser cobrado um valor da ordem dos 7% do PIB – algo que se aproxima do actual défice das contas públicas).
Na presente situação, porém, o fenómeno toma-se especialmente perverso: cada novo aumento de impostos que se decide vai sempre recair sobre os mesmos – os já sacrificados detentores de matérias tributáveis que o Fisco controla. Deste modo, agrava-se progressivamente a intolerável iniquidade entre uma classe média cada vez mais oprimida pelo esforço que lhe é exigido e uma "aristocracia fiscal" que permanece incólume, olhando para a crise com comentários piedosos.
Esta injustiça pode, aliás, vir a ter embaraçosas repercussões com a previsível ligação das condições de acesso a alguns serviços públicos (v.g., saúde, educação) ao rendimento das pessoas. Com este a ser aferido pelas declarações de IRS, não é impensável que, então, possamos ver, lado a lado num hospital público, um abastado homem de negócios e um professor de liceu – o primeiro isento de qualquer pagamento e o segundo obrigado a pagar uma parte significativa dos custos que origina.
Convenhamos: porventura mais difícil de suportar que qualquer fardo fiscal é a consciência da injustiça da sua distribuição. Claro que, no mundo real, uma repartição igualitária dos impostos é um ideal inatingível – mas a prática consente aproximações razoáveis. Qualquer delas passa, seguramente, por um caminho tão antigo que já o Padre António Vieira, no "Sermão de Santo António" (1642), o indicava nos seguintes termos: "não carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem sobre todos", pois "se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos os levarão com igualdade de ânimo".
Hoje, talvez mais do que nunca, é fundamental seguir este preceito, o que implica pôr a "aristocracia fiscal" a pagar impostos. Pretender acabar com a fraude e a evasão seria ridículo – mas é possível aplicar peias capazes de lhes reduzir o alcance. Para tal, o Fisco conta, aliás, com a preciosa ajuda do desertor do imposto que, com frequência, às declarações de rendimentos que roçam a pobreza, junta pedidos de registo em seu nome de bens (v.g., casas, automóveis) só acessíveis a gente de outro calibre financeiro.
Ligar as declarações de rendimentos aos bens sujeitos a registo que cada um possui é uma das técnicas mais eficazes de combater a fuga aos impostos – muito facilitada, aliás, pelos meios informáticos disponíveis. Não admira, pois, que o nosso Legislador a tenha adoptado, entre outras com o mesmo fim, na "Lei Geral Tributária". O que surpreende é que, mais de uma década após ter sido publicada, esta Lei continue sem a regulamentação conveniente para, neste importante aspecto, ser aplicada com eficácia.
O caso traz à memória Almeida Garrett quando, referindo-se às leis fiscais, lamentava que "sendo quase todas concebidas em tom decisivo e ameaçador, vão de tal maneira relaxando-se na execução, que quando se chega a querer verificá-las mais parecem súplicas do que leis" ("Imposto das décimas", 1827). Seria de dizer que, quase 200 anos depois, nada mudou nesta matéria – não fossem evidentes os ganhos de eficiência que a aplicação generalizada da informática trouxe ao Fisco.
Ora, a realidade é que a máquina tributária ganhou apenas uma eficiência selectiva, isto é: para uma parte dos contribuintes (digamos, a classe média) tornou-se implacável; mas para outra parte (a "aristocracia fiscal") continua tão inofensiva como sempre foi. Esta dualidade é especialmente indecente nos tempos que correm. Ou a combatemos até ao limite do possível, ou ela acabará por destruir a relação de confiança que tem de existir entre os cidadãos e o Estado – com as consequências que se podem adivinhar.