Não há melhor carapaça do que nascer em Boliqueime, não se meter em política até ao 25 de Abril e ter feito apenas carreira como Professor de economia até aos 40 anos para esconder o animal político. Mas o instinto político está-lhe no sangue. Pode ser difícil explicar para um homem que não vem de uma família espiritual como Mário Soares e não tinha biblioteca em casa da arte de fazer política. Mas Salazar não era também assim? Não há interesses superiores do Estado nem de estabilidade política, nem disciplina partidária ou amizades que lhe deram tudo, nem relações e cooperação institucionais que se atravessem no caminho e consigam levar a melhor. Do ataque a José Sócrates da semana passada, no prefácio presidencial dos Roteiros VI, aos ataques a Pinto Balsemão nos anos 1980 distam 30 anos. Mas o calculismo político e os jogos palacianos são os mesmos. Nem o parece mover a vingança pessoal. Tudo é pura política.
Balsemão não tem política económica
Tudo começou com a morte de Sá Carneiro e a sucessão por Pinto Balsemão. Depois de um ano de governo (e cerca de dois após a legitimidade eleitoral da AD com maioria absoluta em Outubro de 1980), Cavaco Silva já estava a conspirar contra o primeiro executivo Balsemão. E não demorou tempo a fazer o mesmo ao segundo. Balsemão caiu. Cavaco disse então do colega de partido: "como professor de economia tenho muita dificuldade em dizer qual foi a política económica do governo Balsemão. Não me parece que se possa dizer que o Governo teve uma política económica no verdadeiro sentido da palavra." Cavaco não quis avançar para a liderança do PSD. A vitória do PS nas eleições de 1983 era então muito provável. Tal como veio a acontecer.
Bloco Central: pior que o gonçalvismo
Chegou o Bloco Central para tratar da crise económica. Com Mário Soares e Mota Pinto. Cavaco não deu ajuda nenhuma. Com seis meses de governo, estava a dizer no Congresso de Braga do PSD, em Março de 1984: "Portugal vive a sua situação mais grave desde a derrota do gonçalvismo. A crise económica e social é profunda, a dependência externa é acentuada". Mas o facto é que o país já estava a recuperar com a ajuda do FMI. Em 1985, a demissão de Mota Pinto, vilipendiado por uma questão orquestrada sobre "sacos azuis" que visava isso mesmo, foi a oportunidade política de Cavaco para ser líder na Figueira da Foz. Deu então cabo do Bloco Central e da candidatura de Soares à Presidência da República apoiado pelo PS e PSD, como estava quase acordado com Mota Pinto. Lançou Freitas do Amaral para Belém, curiosamente o seu aliado tático na queda de Balsemão, e ganhou as legislativas de 1985 que era o que importava.
Os "amigos" Eurico de Melo e Fernando Nogueira
Depois foi o cavaquismo. Para o que interessa nesta história, durante os dez anos em que foi primeiro-ministro, trucidou em defesa do seu interesse político amizades que fizeram tudo por ele na Figueira da Foz. Eurico de Melo quis sair do Governo por razões pessoais. Cavaco pediu-lhe para esperar e depois chutou-o com outros numa remodelação colectiva para dar oxigénio ao governo. Fernando Nogueira, que sacrificou a amizade com João Salgueiro para apoiar Cavaco na Figueira da Foz e lhe deu tudo no governo, foi tratado como um desconhecido na disputa pela liderança do PSD com o jovem Durão Barroso em 1995 e ainda levou um puxão de orelhas público por se atrever a abrir o jogo sobre a candidatura presidencial de Cavaco em 1996. Eurico de Melo e Fernando Nogueira nunca mais voltaram à política. Talvez traumatizados. Cavaco só via Belém à frente e só pensava nele. Quis deixar o governo antes do fim do mandato em 1995 e foi fazer efeitos tabu para o Pulo do Lobo. O país e o PSD ficaram à deriva. Mas esticou a corda de mais. Pela primeira vez teve um erro grave de avaliação e perdeu as presidenciais de 1996 para Jorge Sampaio. Fez a sua travessia no deserto. Curta.
O monstro contra Guterres, a hibernação e a má moeda
Voltou em 2000, já com a ideia de tentar Belém de novo em 2006. Foi no segundo governo de António Guterres, depois do Orçamento de Estado para 2000, que escreveu o artigo "O Monstro". O país vivia ainda o sonho da Expo 98 e entrava no euro mas Cavaco denunciava o forró despesista do hoje Alto Comissário para os refugiados. Guterres ficou com o ferrete e o veneno limiano e a queda da ponte de Entre-os-Rios acabaram com ele. E com uma possível candidatura presidencial em 2006. O monstro de Cavaco hibernou durante o governo de Durão Barroso e da amiga Ferreira Leite. Apesar do despesismo ter continuado (até com o país de tanga). Cavaco precisava de ser o "candidato natural" do PSD em 2006 com a ajuda de Durão Barroso. Ficou branco como a cal, conta Maria João Avillez, quando este foi para Bruxelas e Santana Lopes ficou ao leme da governação. Recompôs-se rápido e atacou forte. Veio o artigo da Lei de Gresham, da má moeda que expulsa a boa, que ajudou Santana a cair. Em 2006, cumpriu o sonho de Belém. Só outro animal político, Mário Soares, que o conhece bem e sabe que representa o papel que não é da política para ter mais espaço de manobra , tentou impedi-lo.
Guerrilha em vez de coperação
Com Sócrates a capa da cooperação estratégica serviu, sobretudo, para melhor sobreviver a um governo de maioria absoluta socialista, o primeiro da democracia. Em 2009, não foi certamente por acaso que coube à amiga Ferreira Leite defrontar Sócrates nas legislativas (depois de Marques Mendes e Luís Filipe Menezes terem ficado pelo caminho). Depois da nova vitória presidencial de 2011, começou a guerrilha institucional aberta com Sócrates. Mas com um governo minoritário e o país perto da bancarrota era mais que nunca necessária a cooperação estratégica. O que prova como Cavaco funciona. Sócrates caíu na armadilha de aceitar a guerra. Não deu cavaco a Belém sobre o PEC IV e demitiu-se com o seu chumbo no Parlamento. Perdeu as eleições, exilou-se em Paris, é alvo de notícias quase semanais que o põem em causa e o achincalham. Mas Cavaco não o deixa em paz. Na semana passada, no Prefácio ao Roteiros VI acusou-o de "deslealdade histórica" ao não o informar no ano passado da apresentação do PEC IV. O ataque foi tão extemporâneo e despropositado que o PS veio unido em socorro de Sócrates e, para todos os efeitos, ficou colado à defesa de um homem que ainda não se sabe se vai ter de passar mais tormentas.
O que move Cavaco?
Quais são as reais motivações de Cavaco? Debilitar os socialistas, serem eles a arcar com o ónus de rejeitarem um Bloco Central sob a égide presidencial se a crise apertar ainda mais? Condicionar a estratégia do PS para as presidenciais de 2016? Apostar em António Guterres ou Jaime Gama pode ser o passado e o país precisar de uma lufada de ar fresco. Ferro Rodrigues não tem o perfil para unir os portugueses. E António Vitorino não tem trabalho executivo para mostrar, que fica bem a um forte candidato. Resta António Costa. Representa um salto geracional, tem trabalho executivo e o precedente bem sucedido de Jorge Sampaio. Mas de todos é o mais próximo de Sócrates, com quem fez em 2005 um pacto de ajuda mútua que não parece denunciado. É aqui que pode estar o que move hoje Cavaco. Daqui a menos de quatro anos, abandona Belém com 76 anos. Não parece trabalhar para uma nova carreira política pós- Presidência. Mas o instinto político que lhe corre nas veias não lhe dá sossego. Durão Barroso, o provável candidato do PSD às presidenciais de 2016, deve aproveitar.