terça-feira, 1 de maio de 2012

i: Carne Ross - “Democracia participativa não é comunismo. E já se provou que funciona!”

O "i" publica uma entrevista bastante interessante a Carne Ross, diretor da Independent Diplomat, organização sem fins lucrativos de apoio à estratégica e técnica diplomática. Ross foi funcionário público no Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e na missão do Reino Unido na ONU, onde serviu como perito em questões do Médio Oriente, lidando com questões relacionadas com o Iraque e o Afeganistão. Nesse âmbito acabou por condenar as premissas apresentadas pelo governo britânico que levaram às invasões, acabando por abandonar o funcionalismo público.  É apoiante da ideia da Assembleia Parlamentar das Nações Unidas (UNPA), uma possível adição ao sistema da ONU, que ambiciona eleições diretas, para a composição do seu parlamento, pelos votos dos cidadãos de todo o mundo, uma ideia com raízes na fundação da Liga nas Nações em 1920.

Na entrevista, tendo em vista a discussão do seu livro "Revolução sem Líder", aborda a crise e  a falência do sistema político do mundo ocidental, dos seus agentes (partidos) e funcionamento, dominados por interesses corporativos empresariais. Apela a uma revolução política e social em torno de um sistema democrático participativo, em que os cidadãos devem estar na linha da frente para resolver os problemas da comunidade e construir um futuro que interesse a todos e não somente a alguns.

http://www.ionline.pt/mundo/carne-ross-democracia-participativa-nao-comunismo-ja-se-provou-funciona

Por Joana Azevedo Viana

O i falou com o autor de “A Revolução sem Líder”, livro explosivo sobre a solução de futuro que nos resta, segundo o ex-diplomata britânico

Carne Ross é um político desiludido. Por saber que Saddam Hussein não tinha armas de destruição em massa e porque “a guerra deve ser sempre o último recurso”, o diplomata abandonou a ONU pouco antes da invasão do Iraque. Quatro anos depois, em 2006, começou a escrever “A Revolução sem Líder” – livro que chegou às bancas portuguesas há um mês e onde o fundador do instituto Independent Diplomat defende a criação de um novo sistema político como última solução para os actuais problemas. “Anarquismo” é o conceito que criou para definir a democracia participativa em falta.


Estamos a caminhar para uma nova ordem mundial?
Não tenho a certeza do que que “nova ordem mundial” quer dizer. A expressão foi usada por George H. W. Bush para falar de um mundo dominado pelos EUA. Claramente, esse mundo acabou. Agora estamos a entrar num mundo com diferentes poderes e onde actores não estatais são tão importantes como os estados, ou por vezes mais. É uma imagem confusa. Se calhar “ordem” é a palavra errada para a descrever. Mas também não é caos. É algo entre ambas – complexidade, talvez.

Acredita mesmo que a resposta aos actuais problemas é uma “revolução sem líder”?
Sim, acredito numa revolução sem líder. Desprezo a ideia de que uma só pessoa pode ter respostas para todas as outras. Foi-nos sendo dito que não temos poder e não sabemos o que fazer. Mas o que acontece é exactamente o oposto. Na realidade, temos todo o poder! Se ao menos o utilizássemos...

Este livro é uma espécie de tratado. O que defende com ele?
A ideia é muito simples: os governos não estão a resolver nenhum dos problemas mundiais, das alterações climáticas às crescentes desigualdades. Não temos alternativa, temos de ser nós a actuar.

Porque decidiu escrevê-lo? Chegou às bancas num timing perfeito, dada a crise, as revoluções populares árabes...
Comecei a escrevê-lo há cinco anos, muito antes da Primavera Árabe ou do Occupy Wall Street. E quis escrevê-lo para responder a uma pergunta que me andava a incomodar.

Que pergunta?
Tinha trabalhado no governo [britânico] e já não acreditava na eficácia nem na honestidade dele. Mas sem governo o que resta? Que forma de fazer política pode resultar? É a essa pergunta que tento dar resposta com este livro.

A resposta está no “anarquismo” que defende, por oposição a anarquia?
Talvez. Para mim anarquismo é auto-governação responsável. Não é caos nem violência, nem a busca de um novo estado. É assumir a responsabilidade pelos problemas que mais nos preocupam e agir, de forma cooperativa e não violenta, para lhes dar respostas directas.

Abandonou o seu cargo na ONU em 2002, quando se discutia a invasão do Iraque. Fê-lo apenas por causa da justificação dessa invasão?
Também, mas não só por isso. Estive a trabalhar no dossiê Iraque durante quatro anos e meio, enquanto representante do governo britânico na ONU. Apesar de não sabermos que armas é que Saddam tinha, também não sabíamos se as que detinha representavam uma ameaça real. A nossa avaliação interna na altura era que não havia ameaça. E foi essa a avaliação do Reino Unido e dos Estados Unidos entre 1997 e 2002, os anos em que estive debruçado sobre este assunto.

Mas não foi isso que foi vendido à opinião pública na altura.
Pois não. Tony Blair e George W. Bush ainda hoje dizem que foram levados ao engano pelas “provas” dos serviços secretos e pelos serviços de informação. Isso é mentira! Demiti-me por isso e porque havia alternativas pacíficas à guerra que não foram tentadas nem sequer ponderadas pelo meu governo. A guerra deve ser sempre o último recurso.

No livro fala de uma experiência interessante do psicólogo Stanley Milgram nos anos 60 que mostra que as pessoas obedecem facilmente a ordens – como, por exemplo, torturar alguém – se lhes for dito que não serão responsabilizadas pelas suas acções. O problema actual não será mesmo esse, a falta de vontade de assumir responsabilidades? Não preferimos que outros tomem as decisões por nós?
Sim, é mesmo um grande problema. Mas penso que os problemas actuais são ainda piores que esse problema persistente de que falas e que foi abordado na experiência Milgram. Hoje em dia é dito às pessoas que não precisam – sublinha a palavra “precisam”! – de resolver os problemas, porque o governo tem-nos sob controlo. Isto é obviamente mentira, mas mesmo assim as pessoas continuam a preferir acreditar que não têm de fazer nada e continuam a preferir acreditar que podem continuar a culpar os políticos por tudo. Isso é irresponsável. E podes ter a certeza que vamos directos para o inferno numa cesta se não acordarmos rapidamente para a realidade.

Fala muito da forma como os interesses das grandes corporações têm influência nas decisões políticas. Não acha que a mudança será impossível enquanto o mundo empresarial tiver esse poder?
Não, acho mesmo que não. Os interesses corporativos dominam aquilo a que chamamos “governos democráticos” – compostos pelo parlamento, pelos executivos, etc. Mas nós temos de parar de olhar para o statu quo como democracia. O statu quo não é democrático. Temos de construir novos sistemas – cooperativas, novos bancos, novas formas de comportamento – do zero. Se continuarmos a depender dos sistemas políticos “democráticos” convencionais, os interesses corporativos ganharão sempre. As grandes empresas são mais poderosas que nós neste sistema. Mas elas não podem travar acções de fundo levadas a cabo por pessoas que fazem coisas por e para si próprias.

Qual é o seu balanço do primeiro mandato de Obama, agora que está a terminar?
Estou desapontado. O grande beneficiário da reforma do sistema de saúde, a grande conquista da administração Obama, é a indústria, não as pessoas comuns. É assim que Washington funciona.

E na área das relações externas?
Também estou desapontado, sobretudo com o aumento do uso de drones [aviões não tripulados] para homicídios extra-territoriais. Esta táctica de assassinatos patrocinada pelo estado [americano] aumentou dramaticamente sob [a administração] Obama e apenas prolonga a interminável guerra contra o terrorismo. Depois há a Lei Dodd-Frank, concebida para controlar a indústria financeira, que no futuro será vista como um fracasso, penso eu. Os bancos vão voltar à acção como sempre. Nada vai realmente mudar.

Obama é um mau presidente?
Vejo-o como uma figura trágica. Penso que ele concordaria com a minha análise, mas não pode fazer nada a não ser fingir que tem feito o que sempre quis fazer. Estou seguro de que não é esse o caso. Ele é um bom homem que está encurralado por este monstro que é a política contemporânea na América.

Uma das soluções que aponta para a actual crise é o conceito de orçamento participativo. Dá o exemplo de uma experiência nessa área levada a cabo em Porto Alegre em 1989.
Há outros, muitos outros exemplos em todo o mundo. Aqui, em Nova Iorque, a cidade está a começar a fazer experiências com orçamentos participativos. Isso está a começar em pequena escala, mas tenho confiança de que vai crescer. No Reino Unido há várias cidades a usar esta técnica para decidir os seus próprios orçamentos. Acho que vamos começar a ver isto acontecer mais.

Há pouco falava da Lei Dodd-Frank, exclusivamente norte-americana. Em relação ao resto do mundo, como analisa a gestão da crise financeira pelos governos?
As respostas dos governos têm sido desastrosas. Na Europa, a austeridade está a punir severamente as pessoas pelos erros dos seus governos. É grotescamente injusto. Como sempre, são os mais pobres que estão a sofrer mais. E nos Estados Unidos a crise provou que o país não tem uma economia de livre iniciativa.

Que economia tem o país então?
Uma espécie de economia socialista, mas de um socialismo para os ricos. O oligopólio de um punhado de grandes bancos é essencialmente protegido pelo governo. Os bancos ficam com os lucros todos, enquanto o povo suporta os riscos todos e as consequências do crash. E a legislação governamental a este nível – como aumentar o controlo de capitais dos bancos – não vai fazer nada para travar esta desigualdade fundamental.

É outro sistema que também tem de ser repensado e construído do zero?
Sim.

A Islândia tem mostrado que há outra forma de lidar com os problemas financeiros. Acha que o caso islandês pode ser aplicado noutros países?
Claro. Tem de haver perdão e anulação da dívida a uma grande escala. Isso beneficiaria toda a gente. Ninguém ganha com esta austeridade horrível que atingiu as economias de Portugal, de Espanha e da Grécia em particular, e outras em geral. A União Europeia está a seguir um caminho absurdo, que vai lesar a economia europeia ao longo de vários anos, isto para não falar do sofrimento humano que o desemprego e o colapso dos serviços públicos provocam.

Apesar da desresponsabilização de que falávamos há pouco, parece haver cada vez mais pessoas a tentar alterar o statu quo. Acha que o trabalho dessas pessoas deve concentrar-se em quê?
Sou a favor da substituição dos actuais sistemas de forma pacífica e gradual.

Na prática defende a criação de um novo sistema político?
Acho que os actuais sistemas têm de ser repensados e substituídos, sim. Nós não temos uma democracia real. Só poderemos ter um governo para o povo quando o governo for o povo, quando as pessoas começarem a fazer realmente parte dos processos de decisão. Isto não é uma ciência complexa nem é comunismo. É simplesmente as pessoas comuns tomarem decisões quanto às coisas que as afectam.

Democracia participativa, como os orçamentos de que falava?
Sim. E já se provou que funciona! Além disso, é preciso mudar a unidade fundamental da economia, do sistema económico actual. A constante busca de lucros das empresas privadas não é o caminho, nem para as pessoas nem para o ambiente. É possível estabelecer cooperativas em quase todas as áreas, do sistema bancário ao da saúde, cooperativas onde cada um dos envolvidos tenha uma palavra a dizer. O actual modelo simplesmente não está a funcionar e as provas estão à nossa volta, para onde quer que olhemos. Temos de construir com urgência um modelo melhor para nós próprios.

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