terça-feira, 23 de agosto de 2011

Incompatibilidade do cargo de deputado com a profissão de advogado

Existem muitos deputados na Assembleia da República que acumulam o cargo público com o de advogado. Do meu ponto de vista, qualquer cargo num órgão de soberania deve ser efectuado em regime de exclusividade, tanto pela sua exigência, como pela sua responsabilidade, ainda para mais quando falamos de advocacia, cujo exercício da profissão pode colidir muitas vezes com o interesse público ou do Estado para beneficiar interesses individuais e privados. Deste modo, acho bastante razoável exigir-se aos advogados que foram eleitos deputados a suspensão da sua inscrição na Ordem.

A Constituição da República Portuguesa refere, no artigo 110º, que "são Órgãos de Soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais". De acordo com o artigo 4º do Regime de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, todos os titulares de funções em Órgãos de Soberania devem exercer "(...) as suas funções em regime de exclusividade, sem prejuízo do disposto no Estatuto dos Deputados à Assembleia da República", sendo a sua titularidade "(...) incompatível com quaisquer outras funções profissionais remuneradas ou não, bem como com a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas colectivas de fins lucrativos".

O Estatuto dos Deputados indica, o artigo 20º, várias incompatibilidades para o exercício do cargo, entre os quais ser "Funcionário do Estado ou de outra pessoa colectiva pública", ou ser "Membro do conselho de gestão de empresa pública, de empresa de capitais públicos ou maioritariamente participada pelo Estado e de instituto público autónomo". O artigo 21º indica os diversos impedimentos a que um deputado está sujeito, carecendo de autorização da Assembleia da República para serem jurados, peritos e testemunhas, ou para servirem de árbitros em processos de que seja parte o Estado ou qualquer outra pessoa colectiva de direito público. Este artigo refere ainda que está vedado aos deputados "exercer o mandato judicial como autores nas acções cíveis, em qualquer foro, contra o Estado" e "beneficiar, pessoal e indevidamente, de actos ou tomar parte em contratos em cujo processo de formação intervenham órgãos ou serviços colocados sob sua directa influência". Ainda de acordo com o estatuto é obrigatório aos deputados fazerem um registo de interesses quando vão para o parlamento, consistindo na descrição de actos e actividades susceptíveis de gerar impedimentos para o cargo (artigo 26º). O artigo 27º descreve ainda o eventual conflito de interesses, sobre o qual os deputados devem declarar a existência ou interesse particular aquando da apresentação de um projecto de lei ou intervenham em quaisquer trabalhos parlamentares.

O bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho Pinto, tem sido o grande baluarte na luta por um regime de incompatibilidades mais aprofundado para quem exerce cargos públicos, que inclua um impedimento legal dos deputados em exercer advocacia, referindo que: "Quem está a fazer leis não pode estar também a aplicá-las" e que "se um presidente de Câmara e um membro do governo, quando assumem funções, suspendem o exercício da advocacia, o mesmo deve acontecer com um deputado". De facto, a Assembleia da República como órgão gerador de legislação pode dar azo a iniciativas algo promíscuas entre deputado/advogado e os interesses privados. Marinho Pinto dá inclusivamente um exemplo fácil:  "Um deputado que tenha, como advogado, um cliente com problemas de dívidas fiscais, pode favorecê-lo quando estiver a propor alterações à lei geral tributária".

É inadmissível que quem representa o povo português num órgão de soberania como a Assembleia da República coloque em causa os interesses do Estado, podendo intentar ações contra o mesmo e representar clientes que estão interessados em situações que se possam desenrolar a partir do cargo público que exerce. O tráfico de influências não passa só por estas questões, mas também por benefícios a sociedades de advogados para a aquisições de serviços de consultoria para o Estado pelas ligações dos deputados a essas sociedades.
O caso de 2007 relatado pelo Diário de Notícias é um bom exemplo da falta de transparência que poderá advir desta situação de promiscuidade. Jorge Neto (Jorge Neto & Associados), na altura deputado do PSD, usou o seu cargo público, em plena Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças, para criticar o presidente da CMVM, Carlos Tavares, relativamente ao processo da OPA sobre a PT, na qual teve intervenção directa como advogado, representando uma das partes envolvidas no negócio. O Estatuto da Ordem dos Advogados, relativamente a impedimentos refere que: "o advogado está impedido de praticar actos profissionais e de mover qualquer influência junto de entidades, públicas ou privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade".

A própria Ordem dos Advogados deveria incluir nos seus estatutos uma lista de incompatibilidades mais específica e exaustiva, dando transparência e ajudando a limpar a imagem da profissão e da Justiça em Portugal, algo fundamental para qualquer Democracia numa economia de mercado. Todavia, tais alterações, pelo facto das Ordens Profissionais se inserirem na Administração Autónoma do Estado (o conteúdo das suas profissões é de grande importância pública, cujas prerrogativas são delegadas a pessoas colectivas criadas pelo Estado), teriam de ser aprovadas pela Assembleia da República.

Os princípios de Ética da Administração Pública também devem ser tidos em conta quando falamos de cargos políticos em órgãos de soberania, pois tal como os funcionário públicos, também estes se devem encontrar ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo o interesse público sobre os interesses particulares, onde se incluem o princípio do serviço público, da Igualdade e o princípio da Justiça e imparcialidade.

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